Início da vida e a discórdia sobre o artigo 5º da Lei de Biossegurança - Patricia Bono
Pesquisa em células-tronco embrionárias é o novo carro chefe das discussões entre bioeticistas e biojuristas de plantão. Não que o tema seja novo, mas tomou outro tempero desde que foi votada uma nova norma jurídica, pelos nossos congressitas, a Lei nº 11.105/05 (Lei de Biossegurança), que, logo após, o presidente tratou de sancionar.
Se a história tivesse parado por aí, o discurso de proteção à vida (que implica na reprimenda ao Brasil na pesquisa com células-tronco, clonagem terapêutica, aborto, reprodução humana assistida, entre outros) feito pelos religiosos e pessoas que entendem que a vida se inicia com a concepção (leia-se “com o encontro dos gametas”) teria tido um ponto final.
Mas, em decorrência da tentativa de dar caráter de inconstitucionalidade à Lei de Biossegurança, promovida pelo então procurador-geral da República, Claudio Fonteles, a coisa tomou outro caminho, quando ele propôs uma Adin (ação direta de incostitucionalidade) no STF (Supremo Tribunal Federal).
No Brasil sabemos quando alguém morre, pois existem dispositivos normativos indicando a morte cerebral, o que, aliás, facilita a retirada de órgãos, na conformidade da lei, que resulta na possibilidade de vida para muitos enfermos e, na grande maioria dos casos, em uma real melhora em sua qualidade de vida.
Mas a Adin pretende mesmo é saber quando a vida começa. Se a inconstitucionalidade arguida pelo procurador se cristalizar, o Brasil passa a pensar legalmente da mesma forma que várias religiões, em especial a Católica, que defende o início da vida na fecundação, ou seja, no encontro dos gametas e no surgimento de um inédito código genético, mesmo que este “corpo” que detém tal DNA não tenha meios efetivos de se desenvolver, nascer e ser titular de direitos e obrigações, conforme indica o artigo 2º de nosso Código Civil.
Se a postura for esta, estarão impedidas as pesquisas com relação às células-tronco embrionárias, ou seja, células indiferenciadas que são retiradas de embriões inviáveis para uma gravidez, ou que estejam congelados há mais de três anos.
E, impedidas as pesquisas nestes embriões inviáveis, por uma simples questão de lógica, eles terão um destino certo: o lixo.
E pelo que parece, os defensores do início da vida na ocorrência da concepção, bem como o procurador que aponta a inconstitucionalidade da Lei de Biossegurança entendem que o lixo é um destino zilhões de vezes mais ético que a utilização desses mesmos embriões inviáveis para pesquisas que podem, num futuro muito próximo, livrar de sofrimento os enfermos de acidentes vasculares cerebrais, diabetes, mal de Parkinson, Alzheimer, entre outras tantas possibilidades.
O que me aflige não é a postura de cada Chefe de Estado ou de cada religião sobre o tema, mas sim os desdobramentos que estas mesmas posturas podem provocar.
Fala-se tanto em proteção à vida, fala-se mais ainda sobre qual o momento em que ela começa, mas ninguém se preocupou em conceituar vida. Pelo menos, não no campo jurídico. Certo está que este não deve ser o mote da lei. Todavia, seria uma ferramenta interessante que auxiliaria nossos legisladores na defesa de pessoas que, reféns de posturas que impedem o desenvolvimento tecnológico, pudessem brigar um pouco mais, ou não correr o risco de ver a ciência amordaçada.
Observe, também, que a realização de pesquisas em células-tronco embrionárias somente podem ser realizadas com a autorização dos genitores.
Temos, então, que tão importante quanto a pesquisa é o fato de que o Brasil, através da Lei nº 11.105/05, extremamente altruísta no que tange à pesquisa com células-tronco, cristalizou o direito de escolha. E talvez esse fato também afronte as perspectivas do citado procurador ou dos religiosos que perseguem o engessamento de biopesquisas através de leis. Ora, o Biodireito não tem essa função.
Independentemente do resultado alcançado no dia 05 de março de 2008, durante o julgamento da ação citada, uma norma se sedimentará no acervo jurídico do país. E possibilitar o aborto, a reprodução humana assistida, a pesquisa em células-tronco embrionárias no Brasil, entre outras tantas tecnologias que vão surgindo, significa dar aos cidadãos o direito de escolher sobre seu futuro.
Significa, também, tirar da marginalização as mulheres sem recursos financeiros que correm risco de vida ao buscar a realização do abortamento em clínicas de reputação duvidosa; significa dar alento e a possibilidade de se ter um filho para aquele casal com problemas de fertilidade, significa dar esperança para quem sofre com alguma enfermidade, e vê a medicina com mãos atadas.
Se fala muito acerca da proteção da vida e isso é louvável. Mas só devemos nos preocupar com a vida se ela for uma expectativa? Uma promessa de vida? O que tem os defensores da proibição da pesquisa com células-tronco embrionárias a dizer às pessoas que já estão aqui e que, em decorrência de um fator patológico ou de um trauma, estão impedidas de ver seus sonhos realizados?
E mais, devemos usar dois pesos e duas medidas para analisar as tecnologias que podem dar qualidade de vida aos enfermos? Ora, na bandeira contra o aborto, quem defende a proibição indica que seu objetivo é a proteção à vida. Então, quando a Igreja Católica condena o uso de preservativos poderíamos entender que ela não se preocupa com a Aids? Alguém vai ter que fazer essa lição de casa.
Agora, se pensarmos que o embrião guarda a riqueza do que será sua vida - se vier a nascer - ou seja, o DNA, possivelmente em alguns anos também estarão impedidas as pesquisas na carga genética dos gametas, já que, estes sim, são potenciais condutores da expectativa de um novo ser.
Uma proibição dá margem ao surgimento de outra. E de outra. E esse, como já dito, não é o objetivo do Biodireito.
Os teólogos costumam dizer que o dogma “não matarás” tem uma ligação íntima com a questão da alma, o que significa que, com a fecundação, uma nova alma se formou e, realizando-se pesquisas em embriões, esta mesma alma se perderia. O que me incomoda é pensar que o lixo é um lugar melhor para essa alma que o implemento de qualidade de vida dos enfermos que poderão ser amparados pelo resultado das pesquisas. Essa aritmética é muito infeliz.
Se a ciência e a religião quase nunca andaram de mãos dadas, folgo em saber que ainda vivemos em um país laico, que prevê a separação dos poderes e entre eles não se encontra um destinado à religião. A religião é uma escolha de foro íntimo e assim deve ser mantida. Não pode qualquer uma delas pretender mudanças na legislação já posta, que impedirá melhora na qualidade de vida de tantos brasileiros.
O que é mais coerente é deixar que as pessoas escolham o destino do produto da junção de seu DNA. Aliás, tal postura não impede que as pessoas contrárias à Lei de Biossegurança não autorizem a pesquisa sobre seus embriões.
Se o STF confirmar a constitucionalidade da norma que trata de biossegurança, evitará que uma “multidão” de embriões sejam destinados ao lixo, e também estará consagrando o direito de escolha de pessoas que não comungam dos dogmas de várias religiões, jogando um pouco de luz sobre a momentânea névoa do obscurantismo que pairou sobre o Brasil.
As pesquisas sobre as células-tronco embrionárias não pretendem reduzir ao sentido biológico ou genético o que entendemos por vida, mas sim, traçar uma nova possibilidade de futuro para os nossos doentes e dar a cada um de nós a possibilidade de escolher qual será o destino de nosso código genético. E se tivermos tal possibilidade, porque não fazê-lo?
Nenhuma das pessoas envolvidas nas pesquisas com células-tronco embrionárias está dizendo que o embrião não é vida, mas sim que o resultado das pesquisas certamente vai ajudar as pessoas que já estão aqui, entre nós, neste momento. E para minha sorte, os fósforos da Inquisição não podem mais ser usados.
Quarta-feira, 5 de março de 2008
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